BRAUDEL, Fernand. No topo da Sociedade. In: BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo Séculos XV – XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1998
Por: Séfora Semíramis Sutil Moreira[1]
A modernidade, como apontou Adam Smith e outros, foi resultado do crescimento do mercado. Com mais necessidades pelo consumo precisou-se efetuar a divisão do trabalho para que as produções fossem mais ágeis. Mais quantidade de determinado produtos chegando ao mercado faz baixar o valor deste e aumenta-se a possibilidade de consumo – tem-se um fomento econômico. Portanto, a modernização é conseqüência dos processos mercantis.
“A hierarquia mercantil”
Havia tipos diferentes de mercadores – os de vendas diversas, locais e os ultramarinos que comerciavam, geralmente, produtos mais finos e, consecutivamente, mais caros. Pode-se compreender que tinha comerciantes com mais alto rendimento, assim como de mais modesto rendimento.
Com a complexidade derivada de suas ações comerciais e o desenvolvimento econômico do século XI, nas palavras de BRAUDEL, “despertar econômico”, as desigualdades entre este ofício começaram a se acentuar. “E (...) [uma] hierarquização consolida-se com a posterioridade dos séculos seguintes.” [2]. Tinha-se caixeiros, agentes, armazenistas, varejistas e atacadistas que estavam posicionados verticalmente conforme o grau de dificuldade de suas transações e rendimentos resultantes desta sua atividade. Esta hierarquização ocorreu tanto na França quanto na Itália e Alemanha, etc.
Em todas as partes da Europa Ocidental e Oriental, com a distinção entre um tipo de comerciante e outro, conforme, como já vimos, seus rendimentos ou conforme o tipo de comércio que realiza, começa-se a estabelecer dialetos que os definam enquanto a posição que ocupavam.
Exemplo de alguns dialetos usados
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França
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Negociant
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Grande comerciante
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Mundo Islâmico
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Katari
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Idem
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Itália
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Mercant, Ataglio ou Negozinte
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Ibidem
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Sem dúvida os comerciantes atacadistas se destacavam mais do que os varejistas (“de balcão”) no que tange aos ganhos, pois, negociavam grandes quantidades à importantes compradores. Mas, não foi só a riqueza dessa ‘classe’ que aumentou – o ego também. O que justifica a criação de termo que os diferissem, por que nenhum bom comerciante atacadista gostaria de ser confundido com um lojista qualquer, não é mesmo?
Uma característica forte dos grandes comerciantes era a de não se especializarem, para se conseguir ser um atacadista, no sentido literal deste contexto, era preciso tentar vender todo tipo de produto que fosse lucrativo. Essa diversidade comercial característica deste grupo mantinha-se, quase sempre, reservada a eles. Um pequeno comerciante, dificilmente se tornava um grande comerciante, pois não tinha acesso a informações importantes que o possibilitasse aventurar-se num novo tipo de venda, também, não tinha tempo e conhecimento para diversificar seu comércio – era preciso sapiência para lidar com importantes compradores e, principalmente, conhecimento do que estava vendendo. O que restava aos pequenos, então, era a especialização num produto ou setor específico.
O curioso é que esta perspectiva, da criação de nomenclaturas que diferenciassem o pequeno do grande comerciante, não valeu somente para a macro e micro esfera deste ofício, não, entre os pequenos comerciantes também havia distinções, pois mesmo entre eles havia os de rendimentos mais e menos pudicos.
No desenvolvimento e sistematização deste processo hierarquizante foi que nasceram os burgueses, ou capitalistas, e outros tantos indivíduos que sobreviviam e, por que não, ascendiam [3] com esta prática cada vez mais em voga. Nasceu igualmente neste processo crescente o que podemos chamar de ‘banqueiros’, estes que emprestavam capital a altos juros para que os pequenos comerciantes pudessem, também, competir no mercado. Mas, não só isso, os significantes comerciantes também garantiam seus negócios pelos empréstimos fornecidos por estes homens enriquecidos.
Como estamos vendo, a sociedade mercantil vai se complexando. “Constrói-se então toda uma pirâmide de ações escalonadas: na base: artesãos, os camponeses, os pastores, os cerealicultores, os artesãos, ‘regatones’ mascates e os emprestadores usuários; acima deles os capitalistas castelhanos (...); finalmente, acima deles (...) os governadores.” [4]
O capitalismo fortaleceu essas ações comerciais que tendiam a elitização burguesa da sociedade comercial. Mas, o capitalismo não estava somente de um lado, ele trabalhava com o que lhe dava mais possibilidade de crescimento – sendo assim “depois do primeiro surto de mecanização, o capitalismo mais alto voltou ao ecletismo [...]. Ser eminentemente adaptável” [5]
Em Londres, assim como outras regiões de ascensão comercial, no séc. XVIII, os negociantes vão se tornando tão, ou mais, ricos quanto os nobres e começam a gozar dos prazeres da nobreza, dispunham de criados e lacaios assim como os fidalgos. Se por um lado viam-se enriquecidos e desfrutando dos prazeres da nobreza, por outro ainda não dispunham de seu status quo. A nobreza, por sua vez, não queria abarcar em seu seio aristocrático estes ‘novos ricos’, para eles o que valia até então era a egrégia hereditária do sangue nobilita – mesmo que soe prolixo ou tautológico. Em outros termos, o status da nobreza, neste momento, era inalienável.
Os negociantes do comércio internacional e marítimo tornaram-se homens muito ricos e importantes e de grande prestígio social. “O século XVIII será (...), em toda Europa, o apogeu do grande comerciante.” [6]. O dinheiro, ou melhor, a posse dele, foi a grande possibilidade de ascensão de homens comuns, e a melhor maneira de se conseguir dinheiro era através do grande comércio. Os capitalistas, de fato, eram os grandes comerciantes (atacadistas), os que vendiam produtos de luxo e semi-luxo, aqueles que se arriscavam em longas e perigosas expedições marítimas para conseguir um produto diferente que fosse do gosto da nobreza. Estes homens de prestígio social formaram o chamado Patriciado Urbano.
Entretanto, só conseguia dinheiro quem tinha dinheiro, sejamos lógicos, só se é possível investir em um negócio quem tem dinheiro para iniciá-lo. Havia também a chance de se pegar um empréstimo, dirão os menos pessimistas, mas os empréstimos estavam reservados àqueles comerciantes, aos quais, o retorno de seus empreendimentos era certo e não àqueles cujo retorno fortuitamente aconteceria, e mesmo que acontecesse não seria significativo.
Havia uma hereditariedade, assim como acontece com a nobreza e realeza, do ofício comercial. O pai passava ao filho seu comércio, então, o pai cujos rendimentos eram lucrativos daria ao filho a chance [7] de ser membro do Patriciado Urbano. Como estávamos vendo, surgiram os primeiros banqueiros que emprestavam dinheiro a juros e era muito importante para um bom negociante que ele tivesse crédito com estes banqueiros. Para que tivesse crédito era preciso que tivesse êxito em suas ações e fosse honroso com suas dívidas. Geralmente o eram, pois era o mantenedor de sua posição, e até conseguiam ser, também, emprestadores de dinheiro (banqueiros).
Mas, é preciso que compreendamos a perspectiva de tais empréstimos. Quando dizemos que eram emprestados a quem tinha certeza do lucro, não queremos dizer que os empréstimos eram feitos exclusivamente aos comerciantes ricos, não necessariamente, era feito também aos pequenos comerciante que também tinham seus lucros, mesmo que pequenos, certos. O que não acontecia com freqüência era um pequeno comerciante varejista, por exemplo, querer tomar de empréstimo para empreender no desconhecido ultramar e consegui-lo. Pois, estamos falando de um tipo de negócio arriscado, de alto investimento e cujo retorno é lento, portanto, não é da habilidade de quaisquer um. Mas, vale reforço, num primeiro momento, esses empréstimos estavam sob o domínio e reservado às grande famílias de comerciantes.
Feita esta explicação, ressaltamos que foram estes empréstimos que mantinham a rotatividade do comércio. “O importante é que se trata de um crédito inerente ao sistema mercantil (...) o um crédito ‘interno’ e ‘sem juros’.” [8]
“Opções e estratégias capitalistas”
O capitalismo não aceita todas as possibilidades de investimento e de progresso que a vida econômica lhe propõe. [...] é o próprio fato de ter os meios de criar uma estratégia e os meios de modificá-la que define a superioridade capitalista. [...] os grandes mercadores (...) se apoderaram das chaves do comércio de longa distância, a posição estratégica mais representativa; (...) têm (...) o privilégio da informação (...) em épocas de lenta (...) circulação das notícias; (...) por conseguinte, podiam mudar constantemente (...) as regras da economia de mercado. [9]
Os capitalistas tenderam a maquinar de forma que conseguiam, cada vez mais, lucros. Esta articulação dos capitalistas era decorrente, como vimos na citação acima, do aumento de influência destes homens muito ricos que conseguiam obter informações muito antes de sua divulgação ao povo comum.
Estes homens, com seus enriquecimento capital e egrégio, conseguiam manter uma rede de informações que o possibilitava fazer grandes transações. Além do mais, tinham poder econômico suficiente para contratar agentes que trabalhassem para ele em vários locais diferentes, pois se se quisesse manter um comércio de longa distância com povos de outra cultura era necessário que se tivesse a disposição funcionários bem letrados que conhecessem de outras culturas e outras línguas. Por aqui dá para termos uma noção da relevância social de uma capitalista.
“Instrução, informação”
As crianças filhas de importantes homens de negócio, passaram a ser educadas para o ofício dos pais. Alguns deles chegaram até a freqüentar o ensino superior. Mas, o enfoque deste tipo de educação era os ensinamentos práticos da profissão. Para que pudessem dar continuidade ao que herdaram dos pais e, se possível, fazer crescer o que já tinham.
Num primeiro raciocínio podemos pensar que não tinham assim tanta necessidade de grandes conhecimentos, mas não, tinham sim. Tinham agentes trabalhando em diferentes regiões para eles, negociando todo tipo de produto, com diferentes formas cambiais, com efeito, era preciso que escrevessem e calculassem muito bem, para que não fossem ludibriados por seus fornecedores, ou pior, por seus próprios funcionários. Assim, com a educação cada vez mais reforçada desta classe começou-se a perceber uma ascensão cultural. Muitos dos filhos educados de comerciantes passaram a se interessar pelas artes, música, literatura, filosofia, enfim, pela erudição.
[1] Graduando em licenciatura/ bacharelado em História pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) - 2015
[2] BRAUDEL, Fernand. No topo da Sociedade. In: BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo Séculos XV – XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 331
[3] A ascensão de que falamos aqui, destinada aos pequenos comerciantes, é aquela que não chega a ultrapassar a sua esfera microeconômica, ou seja, a ascensão de um pequeno comerciante significa que ele continuará sendo, ainda, um pobre vendedor, mas não tanto quanto antes. Veremos a seguir porque dificilmente o indivíduo da esfera menor conseguia transportar-se para a maior.
[4] Idem, p. 334
[5] Idem, p. 335
[6] Idem, p. 336
[7] Quando dizemos que daria a chance é porque tudo, da herança em diante, dependeria do bom tino do filho para as negociações. Então mesmo que o pai tivesse sido um bom atacadista não significa que o filho também o seria. Para que isso não acontecesse é que os pais começaram a se preocuparem com uma educação que contribuísse para que seus herdeiros fossem bons de negócio, como veremos logo a seguir.
[8] Idem, p. 339
[9] Idem, p. 353
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